Lemos na
carta aos Efésios, atribuída ao apóstolo Paulo: “Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro do Senhor, que andeis como é digno
da vocação com que fostes chamados, com toda a humildade e mansidão, com
longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a
unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito, como
também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; um só Senhor, uma
só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por
todos e em todos vós. Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do
dom de Cristo” (Ef 4,1-7).
Cada
cristão que participa de um grupo de rua tem a oportunidade de fazer essa
experiência de unidade profunda, por motivações de fé. No meio de uma sociedade
onde vigora a rivalidade, a competitividade, somos chamados a aprender a
conviver com o diferente, com o outro, experimentando no dia a dia os frutos do
Espírito. “Como bons administradores da multiforme graça de Deus, cada um
coloque à disposição dos outros o dom que recebeu” (1Pd 4,10).
Como
afirma o filósofo francês, nascido numa família judaica, Emmanuel Lévinas: é no
face a face humano que irrompe todo sentido; diante do rosto do outro, as
pessoas se descobrem responsáveis e lhes vem à mente o Infinito. Também afirma:
quando o rosto do outro irrompe à minha frente, nele eu vejo escrito: não matarás!
Os grupos de rua, ao contrário da vida massificada e individualista a que somos
submetidos em outras instâncias, possibilita esse face a face com nossos irmãos
e irmãs.
Podemos,
de fato, pôr em prática as recomendações de uma vida solidária que o apóstolo
Paulo deu aos cristãos da cidade de Roma: “O
amor seja sincero. Detestai o mal, apegai-vos ao bem. Que o amor fraterno vos
una uns aos outros, com terna afeição, rivalizando-vos em atenções recíprocas.
Sede zelosos e diligentes, fervorosos de espírito, servindo sempre ao Senhor,
alegres na esperança, fortes na tribulação, perseverantes na oração. Praticai a
hospitalidade. Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram. Não
te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem” (Rm 12,9-12.13b.15.21).
Uma
comunidade eclesial formada por inúmeros grupos de rua tem as características
reais de verdadeira comunidade cristã, pois os valores e princípios do
cristianismo são mais bem internalizados quando vividos em grupos menores.
Perspectivas
novas para os grupos de rua no pontificado do papa Francisco
Ao se
apresentar como bispo de Roma, o papa Francisco retoma o documento Lumen
Gentium, quando este desenvolve a teologia da Igreja local, ponto
fundamental para o exercício da colegialidade na Igreja. Assim diz o concílio:
O bispo,
distinguido pela plenitude do sacramento da ordem, é o administrador da graça
do sacerdócio supremo, principalmente na eucaristia, que ele mesmo oferece ou
cuida que seja oferecida, e pela qual continuamente a Igreja vive e cresce.
Essa Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas
comunidades locais de fiéis, que, unidas com seus pastores, são também elas, no
Novo Testamento, chamadas igrejas. Nessas comunidades, embora muitas vezes
pequenas e pobres, ou vivendo na dispersão, está presente Cristo, por cuja
virtude se consocia a Igreja una, santa, católica e apostólica (LG 26).
Outra
atitude do novo papa que vai na mesma direção é a nomeação de uma equipe de
cardeais para assessorá-lo na reforma da Cúria romana. Isso é inédito no
governo papal, que sempre tem agido só ou junto com a própria Cúria. Este
organismo da Igreja tem sido apontado como responsável pela atual crise de
credibilidade que assola a instituição católica. Bem recentemente, na missa do
dia 16 de abril, o papa Francisco, discorrendo sobre a recepção do Concílio
Vaticano II, disse que o grande problema é que ainda há muitos “cabeçudos” na
Igreja. Para explicar melhor o que significa ter cabeça dura, o papa fez
referência aos discípulos de Emaús: “cabeças duras e de coração duro para
acreditar em tudo aquilo que os profetas falaram!” (Lc 24,25). E no domingo do
dia 21 de abril, na ordenação de dez jovens, ele alertou:
“Exercitai na alegria e na
caridade sincera a obra sacerdotal de Cristo, determinados unicamente a agradar
a Deus, e não a vós mesmos. Sede pastores, não funcionários! Sede mediadores,
não intermediários. Peço-vos em nome de Cristo e da Igreja, por favor, não vos
canseis de ser misericordiosos. Oferecei a todos a palavra de Deus que vós
próprios recebestes com alegria. Lembrai-vos das vossas mães, avós,
catequistas, que vos deram a palavra de Deus, a fé. Tende sempre diante dos
olhos o exemplo do Bom Pastor, que veio para servir, não para ser servido, e
procurar os que estavam perdidos.”
Esses
sinais do papa Francisco, somados a tantas outras palavras e demonstrações de
simplicidade e desejo de caminhar junto, retomam o melhor da mística cristã e
da tradição sinodal da Igreja.
À luz
disso tudo, podemos, agora, retomar também nossa experiência de Igreja nas
bases, por meio de grupos, comunidades, círculos, abandonando a mentalidade
triunfante de megaconstruções, de multiplicação de santuários; por meio da
volta à ética, sem excessiva preocupação com a estética. Igreja em ponto menor,
onde a fraternidade é real e o conhecimento mútuo a regra. Recriar nos tempos
de hoje a experiência dos primeiros, entre os quais não existia fome nem
discriminação social, étnica ou de gênero (cf. Gl 3,27-28).
Numa
palavra, podemos dizer que, até o momento, o papa Francisco tem aberto novas
portas para a recepção do Concílio Vaticano II, mas esta nova fase conciliar
terá de sobreviver em meio a muito conservadorismo acumulado nas últimas
décadas.
Grupos de
rua e as coisas práticas para sua vivência e multiplicação
Precisamos,
urgentemente, trabalhar as motivações para a criação e multiplicação de grupos
de rua. As motivações emergem, em primeiro lugar, das necessidades da
evangelização, porém não se podem desprezar as motivações humanas, sociais e
políticas a fim de fomentar a nova sociedade que queremos, como sinal do Reino
querido por Jesus. Recentemente a CNBB se debruçou sobre a necessária conversão
pastoral em vista do fomento a novas modalidades paroquiais. As paróquias nunca
mudarão se ficarem sob o velho esquema de centralismo burocrático, modelo muito
usual nos dias de hoje. Os grupos de rua poderão dar novo dinamismo às
paróquias, descentralizando todos os serviços e ministérios e, sobretudo,
tirando o foco do processo evangelizador da figura do clero e tornando a Igreja
toda mais laical.
Fundamental
para isso é ter clareza do que é um grupo de rua e de quais são suas
atribuições. Esses grupos se formam em torno de algumas tarefas bem claras:
refletir, rezar e agir. Refletem sobre a vida do dia a dia, sob a iluminação da
Palavra de Deus. Vida e Bíblia caminham juntas no dia a dia dos grupos de rua.
Rezam de um modo novo, pois falam com Deus, por meio de orações e cantos,
expondo a própria vida, com tudo o que emergiu do momento da reflexão. Agem, pois
entendem que a reflexão e a oração os levam a assumir compromissos concretos
com todas as necessidades dos irmãos e irmãs, sejam elas religiosas, políticas,
sociais, morais e outras.
Para a
multiplicação dos grupos de rua, é preciso também desenvolver estratégias de
acordo com a realidade local. Pode-se começar organizando a paróquia em
setores, formando pequenos conselhos ou equipes especiais. Para esse primeiro
passo, pode-se partir do levantamento dos endereços dos fiéis que costumam
participar da missa; com a ajuda deles, procuram-se casas dispostas a se abrir
para a experiência dos grupos de rua.
Na
maioria das experiências que conhecemos, são as mulheres que começam e animam
os grupos de rua; porém é bom deixar claro que eles estão abertos à participação
da família toda, homens, mulheres, jovens e crianças. É fundamental que esses
grupos não pratiquem nenhum tipo de discriminação.
Quanto à
periodicidade, cada grupo decidirá com seus membros; porém é importante que se
disponha a reunir-se pelo menos duas vezes ao mês. Em certas ocasiões será
preciso intensificar ainda mais os encontros, por causa de algumas necessidades
pontuais. E quanto ao local dos encontros, há duas experiências mais comuns:
rodízio nas casas dos membros ou um espaço fixo, tal como uma garagem ou o
cômodo um pouco maior de alguma casa.
É
importante também que os membros dos grupos de rua exercitem sua liderança na
comunidade maior, na paróquia, nos movimentos do bairro e outros lugares.
Pastoral e ministérios laicais caminham juntos. Uma pastoral é mais dinâmica à
medida que mais ministérios vão surgindo. Isso porque uma liderança autêntica
multiplica lideranças. O espaço maior – comunidades e paróquias – também serve
como suporte para a formação, aprofundamento e exercício de outros ministérios
que transcendem os grupos de rua. Esse espaço também é importante para que os
grupos não se fechem, pois a comunhão com outros grupos é que garante a sua
eclesialidade.
Como
muito já se falou, esses grupos de rua, círculos bíblicos ou grupos de reflexão
constituem sementes de novas comunidades. Quando uma paróquia se torna grande
sementeira, pode-se pensar no modelo de comunidade de comunidades ou rede de
comunidades. Tudo começa pelo pequeno, pela base, pelo simples, como o ditado
africano usado por dom Moacyr Grechi no 12º Intereclesial de CEBs: “Gente
simples, fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, quando unidos,
fazem coisas extraordinárias”.
Pe. Manel Godoy. Mestre em
Práxis Cristã pela Faje (Belo Horizonte), é diretor-executivo do Ista –
Instituto São Tomás de Aquino (Belo Horizonte), pároco e professor de teologia.
Foi assessor da CNBB (por dez anos) e da Organização dos Seminários
Latino-Americanos, do Celam (Bogotá). E-mail: manologodoy@terra.com.br
(Publicado
na íntegra na revista Vida Pastoral em janeiro-fevereiro – 2014)
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